Francisco e o fim da ideologia dos temas éticos

“O olhar próprio do cristão sobre a vida moral floresce a partir da experiência gratuita da misericórdia”, diz o cardeal Pietro Parolin. “Por isso, os discursos sobre as questões éticas que não levam em conta tal fonte, ou que até desprezam a misericórdia, fazendo a sua caricatura e rotulando-a como ‘bonismo’, nunca captam as dinâmicas próprias desencadeadas no mundo pelos fatos anunciados no Evangelho.”

A reportagem é de Gian Guido Vecchi

Cada vez mais, fala-se de temas como as uniões civis ou a comunhão negada aos divorciados em segunda união. Francisco falou de um tempo e de uma ocasião, um kairós de misericórdia, mas o que significa enfrentar esses temas, hoje, com misericórdia? “Significa que se parte das pessoas concretas, que se tenta dar resposta às situações concretas”, sorri o cardeal. “Senão, o risco é fazer ideologia.”

Francisco escolheu como seu secretário de Estado um fino diplomata que também é “um pastor com cheiro de ovelhas”. Parolin chega emTurim de clergyman e fala ao público de leitores das “palavras do Papa”: um “degelo comunicativo” pontuado por termos como ternura e misericórdia, verdade e justiça.

No Salão do Livro de Turim, citou uma frase de Bergoglio: “A pregação moral cristã não é uma ética estoica, uma mera filosofia prática, nem um catálogo de pecados e erros”. É claro que há resistências. Na Igreja, há quem tema subversões da “doutrina”. Mas a questão, em vez, diz respeito à atitude, ao estilo: “Sim, é assim. Primeiro, há a fé; depois a moral. A moral cristã só pode ser compreendida dentro de uma visão de fé. Porque, senão, torna-se apenas um conjunto de preceitos e mandamentos, enquanto é uma adesão a algo que nos precede”, explica o cardeal.

O papa repete que “o centro é Jesus, não a Igreja”, que, por isso, deve “sair de si mesma”. As palavras e o estilo de Francisco refletem essa necessidade? “O afeto que cresce em torno do papa, de muitos crentes e não crentes que se sentem tocados no seu coração pelas suas palavras e pelos seus gestos, é de algum modo a primeira verificação de que é exatamente assim. A Igreja sai de si mesma não por esforço ou por projeto, mas para seguir Jesus. Essa é a dinâmica própria da natureza da Igreja, que não vive de luz própria, como já diziam os Padres dos primeiros séculos”, observa o secretário de Estado.

“Quando não refletem essa dinâmica, as iniciativas e os órgãos eclesiais também podem se transformar em realidades autorreferenciais. Assim, alimentam-se os preconceitos daqueles que identificam a Igreja com todos os outros aparatos de poder operantes no mundo e que aplicam às ações e às expressões da Igreja chaves de leitura exclusivamente políticas.”

A própria reforma da Cúria desejada por Francisco, além disso, “tem como objetivo o serviço: a Cúria deve ser um instrumento eficaz em favor de toda a Igreja e um modelo no sentido do serviço. Viver a autoridade e o poder como serviço”.

O padre AntonioSpadaro, em Turim, lembrava uma frase de Bergoglio: “Não é preciso falar muito, mas sim falar com a vida”. O cardeal concorda: “Esse é o essencial, também na diplomacia”. A próxima viagem do papa à Terra Santa “tem uma dimensão pastoral e religiosa, mas esperamos que também possa ter efeitos benéficos em nível político, acima de tudo no sentido de uma retomada decisiva das negociações entre israelenses e palestinos, e de um retorno de atenção para a Síria: temo de que o conflito acabe sendo esquecido. É preciso retomar as negociações, sabendo que uma solução militar não levará a nada”.

A “conversão à qual Francisco nos chama, crentes e não crentes”, é, no fundo, “a centralidade de cada homem e de cada mulher”, lembrou ele ao público. Não é apenas questão de estilo. “Amor e pobreza sem justiça não enchem a medida de graça prometida pelo Evangelho. A quem serviria uma Igreja talvez mais austera, mas que não comprometesse os seus membros a trabalhar dia a dia, na concretude das situações, para restituir aos pobres e ainda mais aos miseráveis e aos prejudicados da terra a sua dignidade – também econômica – de cidadãos do mundo que vivem do próprio trabalho?”

Parolin invoca o sermohumilis de Agostinho. “Ainda hoje é o módulo expressivo mais consoante com uma Igreja que quer ser amiga dos homens e das mulheres do seu tempo.” Coloquialidade, proximidade. Porque “a verdade cristã não é um conhecimento alcançado com esforço e reservada para grupos de iniciados que, depois, a sequestram como posse própria”.

No fim, qual é a característica essencial da pregação de Francisco? “Muitos gestos e muitas palavras do papa sugerem a todos, com insistência, que o olhar de Jesus para cada um de nós é de misericórdia e de ternura, não por acaso entre as palavras mais usadas pelo bispo de Roma. Assim, Francisco nos repete todos os dias que Jesus quer o nosso bem, que pode abraçar hoje as nossas expectativas, as nossas perguntas, pode nos levantar das nossas quedas, curar as nossas feridas, abraçar e cumprir, além da nossa imaginação, o desejo de felicidade que congrega a todos”, conclui o cardeal.

“O papa, sobretudo, descreve como ainda hoje também podemos encontrar Cristo e quais são os efeitos desse encontro, que podemos experimentar nas nossas vidas. A dinâmica é a mesma dos encontros descritos no Evangelho. Francisco nos conta com fatos e testemunhos concretos que ainda hoje Cristo ‘passa pela cidade fazendo o bem para todos’. Mesmo quem não crê se sente interpelado por essas promessas boas. Assim, caem muitas hostilidades e florescem novas e inesperadas proximidades.”

IHUSINOS

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